domingo, 29 de agosto de 2010

[subterfúgio 8:00 am]

Eram dias intermináveis. Assistia todos os programas da tarde, sempre na ânsia do sorteio das cinco. Seria hoje? Nazareth era uma mulher convicta. Preparava bolos dia sim dia não. O gato Aristeu e o marido Arquimedes eram seus motivos particulares.

Nazareth adorava remédios. Guardava-os numa caixa dentro do armário que ficava sobre a geladeira.

Aristeu era coberto de auto-piedade e odiava a vida. Arquimedes odiava o próprio nome. Freqüentava o bar da esquina e entre goles de cachaça oferecia palpites aos jogadores de bilhar.

Fazia parte de seu ritual hipocondríaco analisar uma vez por mês a data de validade de seu santuário farmacológico. E de Aristeu que era forçando a tomar partido, que fosse anal, empreitada longa. Este era o exclusivo proprietário de uma vida de desgostos felinos.

Após medicar o gato contemplava com orgulho as centenas de cartelas de comprimidos, as ampolas, os conta-gotas, os emplastros... Nazareth gozava de satisfação.

Os pedreiros aproveitavam enquanto ninguém olhava pra chutar Aristeu. Ultimamente já nem mais queriam aceitar as ofertas gastronômicas de Nazareth. A reforma da garagem e da lavanderia parecia interminável.

Arquimedes andava meio doente, agora já sabia o resultado de vinte e cinco anos de consumo de álcool, mas agora já foi. Em virtude desta doença, estava afastado do trabalho. Primeiro motorista da prefeitura e depois, fiscal. A única coisa que o chateava com relação isso foi não ter trocado sua saúde por uma vida de mais riscos e maiores prazeres – pra que diabos foi casar com aquela mulher. Parecia-lhe que ela tinha sempre gosto e cheiro de madeira.

Era uma manhã de terça-feira. Havia se vestido para levar um documento ao despachante. Lá fora os pedreiros já iniciavam o poeirento trabalho. O guarda da rua fumava um cigarro. Aristeu se lambia na lavanderia. Sempre acordava cedo, já vestido foi a cozinha, disse bom dia. Serviu-se de café e uma bisnaga. Foi à sala sentou no sofá e ligou a televisão. Eis que passados poucos segundos lá vem Nazareth, com seus rebolantes passos, com seu feminino chinelinho de dedinhos e unhas agudas.

Diante de Arquimedes fixou-se sobre os próprios quadris e, com um olhar materno:

– Mas Arquimedes! Assistindo desenho? São oito horas, por que você não vê o jornal? Olha lá. Já deve ter começado...

Antes que terminasse Arquimedes se levantou, desligou a televisão e foi em direção a porta da rua e:

– Quer saber?! Vai se fuder! Não posso mais nem assistir o que eu quiser sem ter de ouvir merda!

Saiu em passos duros. Os pedreiros acompanharam com os olhos.

sábado, 21 de agosto de 2010

[interlúdio off]

Senhoras e senhores, venho por meio desta pedir humildemente um ato de compreensão.

Você leitor curioso que por ventura encontrar este modesto blog, e achar minimamente interessante as besteiras que eu escrevo, por favor, siga-me.

Não sei se isso já lhe passou pela cabeça, mas qualquer resposta, por mais apática que seja... faz bem pra merda do ego do autor.

Um abraço.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

[interlúdio do gordinho sapeca]

Ângelo saculejava-se em pacinhos curtos, joelhos pra dentro e braços ligeiramente flexionados, com as mãos na altura do peito. Era uma corrida de poucos metros que desgraçadamente forçou Ângelo a tocar o próprio calcanhar. Em seu encalço vinha Seu João, cobrindo o espaço deixado pelo abre-alas de cento e quinze quilos. Na corrida Ângelo deixara soltar um incomodo grito que era entrecortado por uma gargalhada inadiável, cansada e dolorida. Como uma mescla desesperada de uma vida instável e desinteressante.

É fato que Ângelo assumia uma espécie de dever moral ao abrir o caminho para Seu João, como se os dezesseis anos que João tinha a mais lhe garantissem respeito, talvez o respeito do bom bebedor. Contudo ele resignava-se a tal fragilidade. Era somente um homem. Um homem comum de meia idade.

[intelúdio dos anjos]

Alfredo era um assíduo freqüentador do Shopping Iguatemi. Ao subir e descer as escadas rolantes seu rosto assumia uma expressão cômica. Como se esperasse por deus.

[interlúdio da cordialidade]

Em seu dever Ângelo sentia suas bochechas enrubescerem e sua jugular pulsar. No ônibus o motorista tinha um rosto compreensivo, o que não combinava com seus trejeitos rudes, ainda mais numa tarde quente como aquela. No patamar da escada Ângelo deixava soltar um sorriso sem graça e um obrigado mudo. Nunca ignorava a presença de Seu João, que tinha uma vida precariamente confortável.

[interlúdio tátil]

Vera tinha uma verdadeira paixão por feiras livres. Possuía uma série de batons que usava para marcar nas paredes de sua casa o cronograma de sua odisséia. Se segunda a sexta ia às feiras nas mais variadas partes da cidade. Circundava os trabalhadores com um ar de humildade. Era sempre a primeira a chegar, pelo menos, uma meia hora antes do primeiro feirante encostar o caminhão. No clarear do dia sentia-se premiada, como uma garrafa de espumante que eclode. Sentia todos os cheiros, sons e energias, como paixões imediatas, sensações inenarráveis. E como um polvo perambulava, sentindo, tocando as frutas e verduras com as pontas dos dedos. E no fim do dia corria-lhe uma lágrima de comoção.

[subterfúgio branquinho]

Os outros passageiros olhavam a cena com uma curiosidade perversa que duraria apenas um instante. Mas, se Ângelo pudesse ler-lhes a mente, certamente tornaria qualquer tipo de vingança um motivo bom o suficiente para fazê-lo viver mais oitenta anos. Porém não, Ângelo não tinha poderes possuía apenas a falta destes como um fato consumado. E sabia disso, por isso por vezes assumia aquele riso tolo. Desajeitado com a mala conseguiu enfiar a mão no bolso da calça e tirar a carteira, sacar o passe e pesadamente passar na catraca.

Sempre tentava minimante escolher um lugar que menos incomodasse o outro. Inconscientemente desejava que o ônibus já viesse cheio, assim se veria obrigado a ficar em pé. Naquele dia havia vagas. Sentou-se junto de uma estudante. Agachava-se em direção ao assento pedindo em silêncio desculpas por existir.

E com a alma, a garota lhe sorriu.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

[subterfúgio dos provérbios]

Arlete corria na pista e comia pelas beiradas. Aturdida pelo vôo de um pombo seguiu-o com o olhar, picotando um céu de curto prazo. Garimpava qualquer coisa minimamente parecida com um brechó (ou bordel) que encontrasse pela frente. Admirava com certo gosto pela excentricidade todos os séculos de tradição.

De frente à Basílica de São Pedro olhava para o céu e imaginava um Jesus gigantesco. Criando um universo de fantasia enquanto contempla sua fazendinha de formigas.

Arlete mordeu os lábios de prazer.

Era uma tarde fria, contudo o movimento contínuo e a multidão de jovens aspirantes e senhoras católicas lamurientas transformava esta num bloco interminável de CO² que lhe empurrava os flancos. Tomou e deu incontáveis esbarrões, eventualmente sentia-se tentada a impostar-se nos calcanhares e derrubar o maior número possível de oponentes.

[prelúdio da guerra-santa]

Algo movia-se embaixo de seu pé, como um bichinho de porco abrindo espaço na pele do hospedeiro na busca de um arco-íris de uma bonança carnal. Este era o pé do alemão nodoso. Bem... as outras características do alemão podemos deduzir...

[interlúdio litúrgico]

Alzira coordenava o grupo de jovens da igreja e cheirava as roupas de toda a família. As campanhas iam bem, fraternidade, casamento com deus, agasalho e a tocha catequética. Trabalhava como educadora numa creche e advertia as crianças sobre a perversidade do racismo. Na alcova de seus sentimentos podia sentir uma luz e um sentido de bem-aventurança que lhe surgia de imediato. Os ícones da santíssima trindade brilhando em seu horizonte de delírios celestiais. E não se envergonhava, ou melhor, sentia-se privilegiada ao descrever para o resto da sociedade civil a gama de possibilidades e deleites que a assepsia espiritual era capaz de propiciar. E jamais se esquecendo da cereja do bolo: o dia do arrebatamento.

[prelúdio do declínio do império]

Naquela noite fazia um frio nocivo. Arlete teve de voltar andando para o albergue, o que não fazia muita diferença afinal ela estava sempre a pé mesmo. Estava já há duas horas procurando sem sucesso um banheiro público.

Normalmente ela não se revoltava tanto com as pessoas, mas de súbito lhe veio a mente as imagens do dia, o jesusgrandão e principalmente o italiano do cento e quinze quilos que puxava a esposa igualmente grande pelo cotovelo enquanto revirava a língua na boca como se quisesse expulsar uma bolinha de vísceras.

Arlete orgulhosamente tinha ímpetos.

Posicionou-se, não estrategicamente, mas propositalmente em frente a janela de molduras torneadas em ouro. Agachou-se enquanto dava o mesmo destino as suas calças.

E como uma rainha: mijou.

domingo, 15 de agosto de 2010

[interlúdio particular]

Sim.

Retornei.

Retornei em glória daleques que sabem que a combinação entre torneiro mecânico e croissant é que dá sentido à vida.

Salve irmãos!

[subterfúgio do motivo]

Eventualmente Roxelle se dissolvia. Virava uma TV cujo canal era incessantemente trocado. Convertia-se em uma personagem maria-qualquer da novela das seis, ignorando as teorias da conspiração e transformando-se num existencialismo puro.

Seu tronco ergueu-se da lama marrom dos sonhos. Era seu nascimento para mais nova e familiar de todas as realidades. Havia tantas folhas de tabaco, que as da superfície, sequer estavam pegajosas.

Naquela manhã alva e cintilante precisava de um banho. E assim o fez, a água morna a acariciava das costas aos vãos dos dedos dos pés.

[interlúdio dialógico]

ato único

Roxelle olha para o céu, meio que procurando quem foi que jogou a pedra.

Já estava puta da vida. E sempre que assim ocorria ficava com uma voz deliciosa.

Esbravejou.

Caralho! Esse narrador só me escreve merda! pensa que é quem? Nem pra procurar novas expressões presta, só repetindo, repetindo... argh! E eu não entendo como você pode ter chegado até aqui, oh paciente leitor... nunca se cansa de ler tolices pretensiosas? Bem... tenho fé que um dia serei deixada de lado...

[interlúdio do recomeço]

Eventualmente Roxelle se dissolvia. Virava um televisor cujo canal era incessantemente trocado. Convertia-se em uma personagem maria-mijona da novela das seis, ignorando as teorias da conspiração e transformando-se num existencialismo puro. Era linda. E teria de voltar para sua cidade. Não que ela fosse bem recebida nessa. O retorno é o que a dissolvia.

Sentia saudade da nina e da pepita. Possuía uma casa espaçosa e bem mobiliada ao estilo colonial. A suspendera juntamente com o pacote do desenrolar de sua vida. E agora resolvera voltar. Alegrava-se em partes por ter estabelecido vínculos maleáveis e era toda coração.

Estava religiosamente cumprindo aviso-prévio no escritório, era uma compulsão de bons dias e bolos de glacê, cafezinhos com sorrisos e paezinhos salpicados de açúcar.

Faltava três dias para o fim do aviso e boa parte de seus pertences já estavam empacotados. Naquela tarde, durante o intervalo para o café foi celebrado entre os funcionários o aniversário de sua amiga Fátima.

Num prenúncio de despedida, e declaração de afeto, os oitenta e cinco quilos de carne rosada de Fátima ergueram Roxelle, assim com um tornado ergue o ar quente. Naquele pesado bolero da pedagogia da libertação, programa eli correa, Fátima dava leves giros com Roxelle em seus braços, enquanto afundava seu rosto nos cachos desta.

No fim da tarde Fátima despediu-se de Roxelle pela última vez, dando um sutil beijo que lhe alcançou apenas metade da boca.

sábado, 14 de agosto de 2010

[subterfúgio besta do caralho]

O cãozinho de deus se chamava cinzento. Havia quem gostasse de lhe forçar um rosnado empurrando-lhe os beiços flácidos para cima, deixando a mostra suas gengivas pretas.

Sua forma de fuçar era a mais sutil e comovente que se tem notícia. Solto nos jardins da casa do senhor perambulada como que sonolento e desinteressado, com o rabo sempre num anglo obtuso, como uma vassourinha cinza e cansada de uma vida inteira de amores defenestrados.

Ria-se, quando imaginava ter matado uma pulga com o matraquear de dentes sob o pêlo ralo e sujo. E sorria de forma muito mais contida quando encontrava qualquer um cuja mão pudesse lamber e, posteriormente, receber um afago na cabecinha.

[interlúdio do êxtase]

Eis que de repente; permitiu-se cintilar em sonhos prateados, na dinâmica das brincadeiras de perseguição pudera sentir seu pêlo chacoalhando dividindo-se em tufos envolto na brisa do fim da tarde.

Agora cinzento não ria.

Gargalhava-se.

Pois encontrara tristonha numa caixa de papelão mayka, a gata do diabo.