quinta-feira, 30 de setembro de 2010

[refúgio assalariado]

No setor das injetoras, Damião e Maria se conheciam e se contorciam. Eram dois animais que, embora racionais, não compartilhavam da lógica dos outros seres.

[...]

Damião abriu os olhos. Dor nas têmporas e gosto metálico na boca, barriguinha cheia de carne, batatas e conhaque e um luxo pretensioso, ostentador. Cachaça. A sanca de gesso e o néon azulado, só o restinho. Feliz envolveu Maria nos braços. Rigidez. Na tabuleta perto da televisão um alerta: limpeza extra 30 reais.

[...]

Foi direto e conciso e assim, Maria cedeu. Estavam enjoados com seus casamentos. Cansados dos filhos e dispostos às novidades concisas, feito as pernas de um touro.

Cheiravam-se no refeitório. Damião a convidou, após alguma relutância e incentivo das colegas ela aceitou.

Ele sempre abria a porta do carro, finalmente as sessenta prestações pareciam valer a pena, pois Maria se despojava no banco. Rindo-se ao lembrar do coletivo que estivera, ainda naquela manhã, aspirava o cheiro do tecido. Damião estava cheiroso e lascivo, corria seu um quilo de mão coxas de Maria, que lembravam muito, pelo formato, coxinhas de galinha.

No salão for-de-laranjeira chutaram estrelas. Mergulharam em uísque, vodka, e tesão. E viveram, numa torrente de alegria ligeiras e serelepes.

O gol bolinha rompia o ar da noite. No limite da velocidade, contudo veloz. Um caça assalariado, analfabeto e orgulhoso. O motel se chamava Le Amour. Lugar limpo e mediano. Embolaram-se na disputa pelo corpo um do outro, pelejaram por quarenta minutos.

Enquanto a fumaça dos cigarros desenhavam esculturas abstratas no ar o Bolero de Ravel lhes fazia pairar.

No bater da fome notaram o frigobar. Então festejaram entoando cantigas de reis pela fartura enquanto em explosões de sabores ofereciam a baco cada um dos petiscos. Sentiam-se consumados. E bem no fundo, felizes e dispostos a repetir aquilo todas semana. Afinal, era uma bela festinha pela módica quantia de setenta reais.

Entretanto...

Entretanto senhoras e senhores.

Sempre chega o dia em que, questionados pelo mundo, começam a se questionar. Maria com toda a razão do mundo, enquanto esfregava os azulejos do banheiro pensava - Oh meu deus... o que foi que eu fiz. E Damião - Mas é o inferno mesmo! Duzentos e vinte real!

domingo, 26 de setembro de 2010

[interlúdio do cu que treme]

Naquela época Francisca tinha uns onze anos. Todos os dias enrolava um cigarro com qualquer papel que achasse. Um grosso cigarrão recheado de vento. Até que, numa quinta-feira aproveitando da solidão e dando pouca atenção aos detalhes do mundo. Enrolou e fumou a carta que chegara para seu pai.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

[prelúdio de um dia de trabalho]

Era um corredor polonês construído de casacos baratos. Elancas, moletons e principalmente nylon. Acordara a meia hora, e agora no ônibus, era conduzido. Acompanhava a dinâmica esquizofrênica da cidade. Mais uma vez correria em seu espaço-tempo. De tipos humanos era um experimentador. Eventualmente apático, deve-se dizer. E assim, ajudava a compor, uma linda fazendinha de formigas anti-sociais.

Pulsava e se aproximava pela retaguarda um buço de pelos pretos e compridos acompanhados de sua infeliz e ressentida portadora. Olhos gordos de manteiga. Perfurava os casacos. Uma broca petrolífera que circundava. Rompia o bolo humano sem procurar coerência ou justiça sobre o como e o para onde.

Respirou-lhe na nuca. Aquele buço era ao mesmo tempo o interlúdio e a premonição.

Tanto fez que ele se entregou. Deixou-se esmagar por aqueles setenta quilos de seios e braços gelatinosos. Ele procurou compreender, usando para isso o que lhe sobrava simpatia.

Contudo, a porra da velha empacou na porta.

O sangue subiu! Creio que aqui, não cabe à mosquinha narradora roubar a consciência do pobre. A mosquinha já está esperta. Os insultos e maledicências brotam dos olhos e pronto. Até que de um salto ele venceu o ônibus. Lançou-se a passos largos no asfalto ainda balbuciando maldições. Mas felizmente ele vinha se tornando um otimista convicto.

Enquanto subia à escada rolante com o pescoço num ângulo agudo, admirava uma bela gentona enquanto silenciosamente sugeria para si mesmo.

É uma bundinha assim que faz meu dia feliz!

domingo, 12 de setembro de 2010

[subsídio para o amanhã]

Cansei... Cansei de sempre ser a mesma coisa de ter sempre o mesmo jeito, de sempre ter a solução nas mangas da camisa já desbotada pelo tempo, cansei de correr quilômetros e sempre chegar a lugar nenhum, cansei de ter em mente um jogo que nunca irei ganhar, ou que nunca terá vencedores, nem ao menos pra contar como foi. Cansei de imediato ter tudo e antes do fim do mês não ter mais nada. Cansei de esperar pelo meu aniversario e perceber que o único presente que eu queria já saiu de circulação e nem mais em brechós ou sebos é encontrado.

Cansei de ter palavras vazias, de pensamentos arrasados pelo tempo. Cansei de não demonstrar meus sentimentos, de guardá-los para minha própria sobriedade, de jogar tudo janela abaixo, te tirar a roupa sem sentimentos marcados pelo amor, cansei de não ter papas na língua, ou tê-lo até demais. Cansei de fazer tudo igual, quero fazer tudo diferente a partir de agora, sem choros, sem lagrimas, sem soluços...

Sem a mesmice de acordar pela manhã e ver a cada dia um rosto diferente no espelho. Quero ser essa mesmice, quero acordar e vê-lo ao meu lado, quero partilhar os sentimentos guardados e me embriagar com os rumores que ocorrerão...

Quero ser eu mesma, mesmo que isso se torne uma rotina idiota, uma coisa que antigamente eu chamaria de inútil, quem viveu minha vida sabe que nunca quis partilhar meus momentos, que nunca quis demonstrar o que sinto que um sorriso não saía à toa de minha face, que o orgulho jamais me deixaria melhorar, e que as lagrimas jamais rolariam.

Quem viveu minha vida, conheceu os altos e baixos, soube quando fui feliz e quando meu maior desejo foi amarrar uma corda na janela, mas não para fugir do meu castelo encantado, mas para cair fora na minha vida assombrada pelos fantasmas do passado, pelas discordâncias de sentimentos resolvi ignorar todos os fatos jamais narrados, numa assertiva do tempo composto pelas teorias revolucionaristas que o sistema tenta me corrigir, há tanta coisa subversiva dentro de mim que nem ao menos consigo contá-las, nem todas as estrelas universais conseguem de eu tirar a dor que senti quando ignorada fui... E não foi pelo sujeito mais lindo do colégio, foi pelo eu-lirico que me criou que me deu a luz (se minha vida fosse iluminada).



Por Lilian (fodona) Nicole.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

[interlúdio das estrelas do norte]

Todos os dias nascem milhares de pessoas predestinadas a não serem unanimidade. Eram muitos irmãos e as condições financeiras tão ruins que o querer era um luxo. Mas a Vó Dila andava com o coração generoso nos últimos tempos.

O pequeno Zelito fantasiava. Maremotos de guloseimas, rios de leite e estrelas cadentes de balas de coco. Na verdade não entendia na realidade o que significavam aniversários, ou o que significavam os anos. Contudo isso passou a importar de repente. Era seu aniversário.

Zelito corria no giral, pulava a cancela, perseguia os cães. E tropeçava nos olhos opressores do Tio-avô. Velhaco. Contornou a bengala do velho e entrou na casa aos pulos.

Olhinhos curiosos apoiados na mesa. O dia mal nascia e as promessas já se mostravam mais grandiosas que qualquer outra já cogitada.

– Que isso Vóinha?
– É furunfuzá...
– E é de quem?
– É pra tu mininu... Tu num da fazendo ano?!

Caiu um trovão, o coração de Zelito se arrebatou do sentimento mais profundo e cintilante que somente Deus poderia propiciar a um de seus filhos. Não se agradece por prazer. Zelito saiu em disparada, como que para dar uma volta olímpica em torno do mundo e compartilhar sua alegria de um modo frenético e fraterno. Correu pelo quintal e deu várias voltas em torno da casa, pulou com os cães e deu soquinhos no ar. Enfim, chegou ao ponto final de seu itinerário, isto é, voltou a sutilmente pousar os olhos sobre a mesa na qual a Avó amassava o mimo.

Sua alegria anulava as mazelas do mundo.

Se Zelito suspeitasse provavelmente ele seria outro. A presença do velhaco. Zelito nutria por ele uma espécie de compaixão desgostosa e insossa. E o velho apenas teimava em respirar. Dia após dia.

Do furufunzá começavam a surgir os cheiros e cores, o amarelo da gema, açúcar cristal, cheiro de canela.

O velho espreitando sem na verdade querer estar ali.

Mediante alguns fatos as pessoas se resignam. Sentado num toco de arvore o velho embolava um cigarro de palha. Uma perícia trêmula. Fumou. Deleitou-se com cada cheiro, textura, baforada, até a cerimônia do arremesso da bituca. Deitado na rede, o coração do velho também decidiu que era hora de descansar.

Cortejo e carpideiras. Só elas têm certos direitos. Os olhinhos de Zelito esbugalhavam maravilhados com a magia da vida e da morte, dos ritos, da essência marrom das coisas.

Permaneceu calado e boquiaberto. Enquanto os parentes bebiam o defunto saboreavam os furufunzá.

Zelito passava a entender que a dor, tanto quanto o prazer, o fazia gozar a vida.