sábado, 29 de agosto de 2009

[subterfúgio dos cacos]

De repente Lúcia olhou ao seu redor viu que não havia mais cacos para oferecer. A derrocada: seu lixo. Tentou escalar sobre sua própria apatia e o mundo não oferecia balsamo.

Cansou.

Sentia vergonha de assumir que nunca gostara de nada, exceto de si própria e da vida que idealizava. Seu dia era milimetricamente planejado. No plano constava; horário de dormir e de acordar; o banho com uma tolerância de cinco minutos, para mais ou para menos; as oito horas de trabalho; uma hora de leitura; e uma hora para refeições em geral. O que sobrava do tempo era um problema.

Chegara em casa do trabalho no fim da tarde sexta-feira. Entrou em casa na euforia costumeira, sempre entrava daquele jeito. Abria e fechava o portão rapidamente, subia as escadas. Andava diretamente para o quarto em passos apressados e jogava sua bolsa e o celular na cama, ele nunca tocava. Entrou no banheiro e sentou, sentiu-se aliviada.

[subterfúgio da espera]

Esta noite preparou um jantar solitário. Já não fazia isso há algum tempo. Havia se acostumado a trazer comida pronta, porém dessa vez cozinhou. Abriu uma garrafa de vinho e sentou-se a mesa. Olhava sem apetite para o prato de espaguete a sua frente. Fitou por não sabe quanto tempo. Pensando em evitar o desperdício provou, estava bom. Comeu mais. Comeu tudo. Esta noite não lavou o prato. Empurrou-o para longe. Então pode silenciar-se.

Olhou para os cantos da própria sala. Acendeu um cigarro. Enquanto fumava perdeu a vontade de beber. E ficou ali. Estava indiscutivelmente só. E isso não era novidade, mesmo que saísse permaneceria e dormiria só. Poderia ligar pra alguém, dormiria só. Idealizou muitas possibilidades impossíveis... Poderia gritar, poderia matar um cão estrangulado, poderia chorar, rezar, aparecer nua na janela. Dormiria só.

...

Mas não dormiu. Passou a noite acordada.

Lembrou de como eram as ruas de sua cidade durante o dia, no horário de pico. Como amava o fato não conhecer aquelas pessoas, porém tendo-as para si, como uma droga imagética. Pensou nas deprimentes casas de cultura. Pensou em deus. Pensou em sexo. Contou envergonhada: dois anos sem dar um único beijo. Tentou fazer algum tipo de promessa pensando no que seria capaz de trocar por um abraço, por um abraço de verdade, seguido por um caloroso beijo.

Mas seu coração continua batendo incorrigível.

De manhã seus cigarros acabaram. Tomou o que restava de um café morno e saiu.

Alguma coisa deixara Lúcia estilhaçada.

Pegou o mesmo ônibus de todos dos dias. Sem cumprimentar ninguém chegou ao trabalho. Se aproximou de seu armário e um colega perguntou se estava tudo bem. Ela respondeu que sim.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

[interlúdio do cobre]

Havia consenso que os dias andavam estranhos ou eram dias de luta, contudo, são todos iguais. Em todos os lugares, todos os presentes, só se muda a cultura, ou melhor se idealiza mudanças. As crenças permanecem. São necessárias. Em Cubatão, São José dos Pinhais, Aroeira, enfim... Aroeira cidadezinha vizinha do Distrito Federal, esquecida pela seleção mental natural convencionada nos grandes centros urbanos. Aroeira cidade feia. Exceto os filhos dos burgueses, crianças feias cruzavam as ruas da cidade, à pé, todos os dias para ir à escola. Damiana Lopes da Silva, conhecida na cidade como Damiana morena filha de Preta e Donizete, foi uma dessas crianças que brincavam com o que outrora seria considerado lixo, mas nem assim... Jamais perderia a magia o poca-poca e a boneca de palha de milho. O sangue de barata de Damiana não era só dela.

Quantos mais sentiam desejos inexplicáveis contidos incontidos? Ninguém falava, ninguém gritava, alias todos prendiam a respiração e esperavam acabar. A idéia do suicídio em massa estava fora de cogitação. Muito radical. O êxodo fora feito. Não adiantou. Damiana tinha um resquício de individualidade, que não era suficiente, nem sequer fazia-se notar. Entre essas era fato que Damiana tinha o coração do lado direito do peito, isso só seria descoberto no dia de sua autopsia e ignorado. Sua pele cor de cobre sempre fora rejeitada, por isso ela tinha o hábito de passar tardes inteiras ao sol. Ficando negra normal. Não tanto quanto ela gostaria.

Contudo, como não poderia deixar de ser Damiana cresceu. Tudo sempre virava um nó. Que sempre era desatado na incorrigível formação de um novo. Às vezes tudo em seu mundo saia correndo e antes que ela notasse. E antes que ela pudesse avaliar se podia viver sem tudo. Voltava e abruptamente, tudo e um pouco mais a invadia. Por ter aprendido desde cedo a ser cristã agüentava tudo e também por esse motivo logo que apareciam tratava logo de reprimir os desejos inexplicáveis.

Certa vez após trabalhar alguns dias em uma cooperativa local de lavadeiras ganhou um dinheiro, parte foi para comprar um relógio digital e a outra parte ficou guardada para uma eventual viajem à cidade grande. Mas logo foi gasta pelo pai que precisou para pagar uma conta na venda da esquina. A quantia nunca foi restabelecida pelo pai, mesmo assim Damiana agradecia, pois levava uma vida boa em comparação com a média da população local. O relógio era invenção intrigante de gente inteligente além da conta. Pensava: para que tanto. Mesmo assim ficava fascinada, quem dera ela fazer coisas semelhantes ou tão importantes quanto. Tinha entre suas pré-idealizações de convicções a consciência de que algo muito errado acontecia e ninguém percebia. Sonhava descobrir e poder explicar.

Uma de suas teorias era que o mundo físico na verdade era todo refletido por espelhos, céu, água, ar e terra não entendia muito bem e esse era um de seus objetivos em vida. Entender. Não entendia direito também a consciência ou falta de consciência dos bichos, a libido, a que altura ficavam as nuvens. Entre suas idéias imaginava como seria bom ser uma estrangeira e ter olhos azuis.

O relógio digital contava os dias.

[interlúdio da averiguação]

Na imensa liberdade que lhe cercava, teve de assombro a triste constatação: que isso não era liberdade e sim solidão.

domingo, 16 de agosto de 2009

[subterfúgio da regresso]

E Nashtenka voltou. Reapareceu com um eco que Alfredo já havia se acostumado depois de um certo tempo, mas o incomodava quando o silêncio seria o que menos perturbaria sua solidão. O tempo estava enlouquecendo por si só e não havia nada que Alfredo pudesse fazer quanto a isso. Seu passado retornara aos poucos, como um acampamento de ciganos velhos que nunca se cansam de roubar e são todos merecedores do paraíso. Nashtenka voltou idealizando perdão. Afirmando que a razão a abandonara, que no fim ela e se seu príncipe encantado eram só dois pobres diabos. Mas mesmo com tudo aquilo que dizia ter acontecido ela ainda punha a mão no fogo. Negou parte de próprio passado, quando observava ao lado do leito frágil e frio o resto de sua alma que ainda havia, sonhando uma recuperação da mesma sem seqüelas, quando agachada com os olhos cheios de lágrimas clamava em vão nome de deus.

E agora:

Basta lhe estilhaçar uma garrafa vazia de Uísque no crânio. Certo?