sexta-feira, 20 de agosto de 2010

[interlúdio do gordinho sapeca]

Ângelo saculejava-se em pacinhos curtos, joelhos pra dentro e braços ligeiramente flexionados, com as mãos na altura do peito. Era uma corrida de poucos metros que desgraçadamente forçou Ângelo a tocar o próprio calcanhar. Em seu encalço vinha Seu João, cobrindo o espaço deixado pelo abre-alas de cento e quinze quilos. Na corrida Ângelo deixara soltar um incomodo grito que era entrecortado por uma gargalhada inadiável, cansada e dolorida. Como uma mescla desesperada de uma vida instável e desinteressante.

É fato que Ângelo assumia uma espécie de dever moral ao abrir o caminho para Seu João, como se os dezesseis anos que João tinha a mais lhe garantissem respeito, talvez o respeito do bom bebedor. Contudo ele resignava-se a tal fragilidade. Era somente um homem. Um homem comum de meia idade.

[intelúdio dos anjos]

Alfredo era um assíduo freqüentador do Shopping Iguatemi. Ao subir e descer as escadas rolantes seu rosto assumia uma expressão cômica. Como se esperasse por deus.

[interlúdio da cordialidade]

Em seu dever Ângelo sentia suas bochechas enrubescerem e sua jugular pulsar. No ônibus o motorista tinha um rosto compreensivo, o que não combinava com seus trejeitos rudes, ainda mais numa tarde quente como aquela. No patamar da escada Ângelo deixava soltar um sorriso sem graça e um obrigado mudo. Nunca ignorava a presença de Seu João, que tinha uma vida precariamente confortável.

[interlúdio tátil]

Vera tinha uma verdadeira paixão por feiras livres. Possuía uma série de batons que usava para marcar nas paredes de sua casa o cronograma de sua odisséia. Se segunda a sexta ia às feiras nas mais variadas partes da cidade. Circundava os trabalhadores com um ar de humildade. Era sempre a primeira a chegar, pelo menos, uma meia hora antes do primeiro feirante encostar o caminhão. No clarear do dia sentia-se premiada, como uma garrafa de espumante que eclode. Sentia todos os cheiros, sons e energias, como paixões imediatas, sensações inenarráveis. E como um polvo perambulava, sentindo, tocando as frutas e verduras com as pontas dos dedos. E no fim do dia corria-lhe uma lágrima de comoção.

[subterfúgio branquinho]

Os outros passageiros olhavam a cena com uma curiosidade perversa que duraria apenas um instante. Mas, se Ângelo pudesse ler-lhes a mente, certamente tornaria qualquer tipo de vingança um motivo bom o suficiente para fazê-lo viver mais oitenta anos. Porém não, Ângelo não tinha poderes possuía apenas a falta destes como um fato consumado. E sabia disso, por isso por vezes assumia aquele riso tolo. Desajeitado com a mala conseguiu enfiar a mão no bolso da calça e tirar a carteira, sacar o passe e pesadamente passar na catraca.

Sempre tentava minimante escolher um lugar que menos incomodasse o outro. Inconscientemente desejava que o ônibus já viesse cheio, assim se veria obrigado a ficar em pé. Naquele dia havia vagas. Sentou-se junto de uma estudante. Agachava-se em direção ao assento pedindo em silêncio desculpas por existir.

E com a alma, a garota lhe sorriu.

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