segunda-feira, 24 de agosto de 2009

[interlúdio do cobre]

Havia consenso que os dias andavam estranhos ou eram dias de luta, contudo, são todos iguais. Em todos os lugares, todos os presentes, só se muda a cultura, ou melhor se idealiza mudanças. As crenças permanecem. São necessárias. Em Cubatão, São José dos Pinhais, Aroeira, enfim... Aroeira cidadezinha vizinha do Distrito Federal, esquecida pela seleção mental natural convencionada nos grandes centros urbanos. Aroeira cidade feia. Exceto os filhos dos burgueses, crianças feias cruzavam as ruas da cidade, à pé, todos os dias para ir à escola. Damiana Lopes da Silva, conhecida na cidade como Damiana morena filha de Preta e Donizete, foi uma dessas crianças que brincavam com o que outrora seria considerado lixo, mas nem assim... Jamais perderia a magia o poca-poca e a boneca de palha de milho. O sangue de barata de Damiana não era só dela.

Quantos mais sentiam desejos inexplicáveis contidos incontidos? Ninguém falava, ninguém gritava, alias todos prendiam a respiração e esperavam acabar. A idéia do suicídio em massa estava fora de cogitação. Muito radical. O êxodo fora feito. Não adiantou. Damiana tinha um resquício de individualidade, que não era suficiente, nem sequer fazia-se notar. Entre essas era fato que Damiana tinha o coração do lado direito do peito, isso só seria descoberto no dia de sua autopsia e ignorado. Sua pele cor de cobre sempre fora rejeitada, por isso ela tinha o hábito de passar tardes inteiras ao sol. Ficando negra normal. Não tanto quanto ela gostaria.

Contudo, como não poderia deixar de ser Damiana cresceu. Tudo sempre virava um nó. Que sempre era desatado na incorrigível formação de um novo. Às vezes tudo em seu mundo saia correndo e antes que ela notasse. E antes que ela pudesse avaliar se podia viver sem tudo. Voltava e abruptamente, tudo e um pouco mais a invadia. Por ter aprendido desde cedo a ser cristã agüentava tudo e também por esse motivo logo que apareciam tratava logo de reprimir os desejos inexplicáveis.

Certa vez após trabalhar alguns dias em uma cooperativa local de lavadeiras ganhou um dinheiro, parte foi para comprar um relógio digital e a outra parte ficou guardada para uma eventual viajem à cidade grande. Mas logo foi gasta pelo pai que precisou para pagar uma conta na venda da esquina. A quantia nunca foi restabelecida pelo pai, mesmo assim Damiana agradecia, pois levava uma vida boa em comparação com a média da população local. O relógio era invenção intrigante de gente inteligente além da conta. Pensava: para que tanto. Mesmo assim ficava fascinada, quem dera ela fazer coisas semelhantes ou tão importantes quanto. Tinha entre suas pré-idealizações de convicções a consciência de que algo muito errado acontecia e ninguém percebia. Sonhava descobrir e poder explicar.

Uma de suas teorias era que o mundo físico na verdade era todo refletido por espelhos, céu, água, ar e terra não entendia muito bem e esse era um de seus objetivos em vida. Entender. Não entendia direito também a consciência ou falta de consciência dos bichos, a libido, a que altura ficavam as nuvens. Entre suas idéias imaginava como seria bom ser uma estrangeira e ter olhos azuis.

O relógio digital contava os dias.

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