domingo, 6 de abril de 2008

[subterfúgios dos cães e gatos]

Pedro – mais uma de minhas amizades hediondas – me ligou, queria beber. E difícil saber na verdade o que se pensa, o que se quer... o motivo das coisas. Meu novo objetivo tem sido este – encontrar um motivo para as coisas – um dia se deus quiser e o demônio permitir, uma vagina pulsante qualquer me convencerá que motivos não existem e se existem – são desnecessários.
Um botequinho podre, um conhaque, um disco do Jeef Beck seriam capazes de curar as profundas dores da alma do Pedro, seria... pois ele ainda não sofre de desespero e isso sim é alarmante.
Entretanto, ele preferiu me ligar.
Mais uma vez havia sido abandonado por seus vícios líricos.


[subterfúgio do tempo]

– Quantas vezes pode-se viver?
– Muitas.


[subterfúgio do tempo curto]

Nessa minha empreitada de anti-conselheiro charlatânico, descobri que antes do banho frio, é necessário preparar o corpo: dar pequenas salpicadas de gelo no pescoço.

– Alô...
– Alô, Santana... aqui é o Pedro.
– Deixa eu adivinhar. A morte está espreitando...
– Cala a boca! Alias, não se cale. Eu é que estou espreitando sua imprevisibilidade. Este mundo está uma bosta.
– Sim. O mundo é uma merda, mas viver vale a pena. O que está acontecendo? Apareça por aqui... arrumei mobília nova, uma daquelas mesas de centro da Leiteria Korova.
– Ladrão. Mas não é isso. Lembra da Roxelle?
– Lembro.
– Pois é, roubou minha carteira e sumiu.
– Não vai me pedir dinheiro emprestado né...
– Ih. Que nada: o roubo é só a ponta do iceberg. O problema é o abandono.

A essa altura Pedro estava mesmo precisando de um trago. Quem em sã consciência me ligaria as duas da tarde? O horário da profunda revolta. Mas enfim... amigo fodido é para essas coisas. Pedir alento a almas de artistas financeiramente falidas. Então pedi que ele aparecesse.
Bateu na porta com convicção. Através do olho mágico percebi os olhos fundos, a barba feita, o mesmo paletó há dias.


– Entra meu velho. Eu ofereceria bebidas se as tivesse.
– Tudo bem. Eu aceito um copo d’água.
– Claro. Senta aí.

Teve de tirar as revistas do sofá antes de sentar. Eu tive de lavar um copo. Quando voltei ele estava acendendo um cigarro. Ofereceu. Enchi a mão, acendi um e coloquei o resto na prateleira.

– O que a Roxelle fez? – perguntei.
– Tudo. Menos retribuir minha bondade. Você sabe que sou um homem íntegro. Quantos vícios eu suportei, atrasou desvios de personalidade.
– Bom, mas até aí, não tem nada de novo. Deixa eu adivinha mais uma vez. Você destrinchou toda a sua vida para ela e por ela.
– Aí também não tem nenhuma novidade.
– Certamente, mas você está equivocado em acreditar que não é culpado. Quem falou que fazer bem aos outros é garantia de sucesso. A história prova.
– E o que garante?
– Nada.


[subterfúgio comercial]

“o programa que está sendo exibido é uma produção independente, as idéias e opiniões nele expressas são de responsabilidade única e exclusiva de seus idealizadores”


[subterfúgio das cães e gatos]

– Procure pensar que não importa o que você ou ela fez... pense no que pode ser feito agora que a merda já se consumou – eu disse.
– Sabe o que acontece... você é um vagabundo, por isso não liga pra nada.

Deu um trago no cigarro.

– Ela me tratou feito um cão.

Agora ele já estava pronto para o banho. Caminhei até o armário e peguei dentro meia garrafa de wiskie que ainda sobrava.

– Toma um gole. Ela te trata como um cão porque é isso que você é.
– Mas um cão não merece amor.
– Não. Cães não têm dignidade para merecer nada que dure. Você já parou pra pensar no que disse? Já parou para observar o comportamento de um cão? Nem chega a ser digno de pena. É simplesmente uma vergonha. Basta o menor sinal de afeto para que saiam abanando o rabo e lambendo. Se a pessoa o ignora, ele não percebe, quando compreende. Seus sentimentos já se tornaram ridículos. Você é um cão e pode até demarcar seu território, mas isso não segura ninguém, ainda mais se for com outro cão que você estiver lidado.
– Não. A Roxelle não é um cão, mas eu sou. O que não facilita em nada a vida.
– Ninguém disse que é fácil. Mas certamente deve ser divertido.
– Está certo. mas sendo um cão e isso é fato. O que faço? Diga. Já que tem todas as respostas...

Toma mais um gole.

– O que você faz Pedro? O que você faz? Sabe qual é o subterfúgio dos cães, meu amigo.
– ...
– Viver na contramão. Negue sua condição canina, até se transformar num gato.

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